quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O TEMPO SEM RELÓGIO

Já viu e ouviu alguém contando uma história, e ao perguntar quando o conto ocorreu, achando que teria acontecido a pouco, esse alguém diz que se passou faz 40, 50 anos ou mais?
O Tempo é mesmo relativo, parece até que tem 'temperamento'; bastante instável por sinal. Por vezes dizemos: "Tempos difíceis", "bons tempos", "tempo que não passa", "tempo que se esvai", "tempo generoso", "tempo ruim", e por certo que há outros.
Tive essa sensação de forma peculiar ao ler um conto descrito no Dublinenses, de J. Joyce.  Ele tem um jeito de contar que gosto de ouvir. Conta coisas que acontecem em todos os tempos e em todo lugar, não só em Dublin. Parecia estar falando de algo que aconteceu no agora, e descreve como criança, sem dizer se o que se passou foi bom ou ruim, só foi. 
Espontâneo pensar que os seres humanos não cabem no tempo, quer ele tenha temperamento ou não. Ou o outro extremo, estão presos nele, sem que se possa sair. Sempre pergunto aos meus alunos, se pudessem desenhar o tempo, como ele seria.
Mas, o conto que me demorou foi sobre o senhor Little Chandler, que, segundo o que ouvi, descontentou-se consigo. Isso não causou estranheza alguma, pois são poucos os que estão satisfeitos com quem são ou onde estão. Conheço muitos casos.
Aí pensei, mas o ser e o estar não estão no tempo? Como se conjuga um verbo sem tempo? 
Nem precisava provar, o senhor Einstein tinha mesmo razão. Percebeu que tempo e espaço são indissociáveis. E quem será que os separou antes dele dizer isso?
Logo passei a desconfiar que o personagem de quem falei teria sido preso por esse de temperamento instável. Quem é que não sabe que mágoa, ressentimento, ódio, rancor, inveja prendem no tempo? Por vezes, por causa de bobagem. Isso que me chocou.
Segundo a descrição do conto, o senhor Little Chandler tinha uma esposa e tinha vontade de ler poemas pra ela. Tinha casado a um ano. Tinha um filho, um bebê saudável. Tinha família. Não tinha hábito de bebida forte, mas bebeu Whisky, só como pretexto para conversar. Tinha alma sensível de pele fininha, escritor de poemas. Tinha sofrimentos e impressões que queria expressar em versos. "Memórias do passado não o sensibilizavam, pois tinha a alma repleta de uma alegria presente (...) e singela". Não se achava velho, tinha 32. 
"Às vezes, desafiava a causa de seus temores". Tinha "melancolia moderada" e também tinha fé. Era sério. Tinha resignação. Era irlandês. 
"Não tinha dúvida que para vencer na vida era preciso ter audácia". Achava que não a tinha. "Tinha o hábito de andar depressa". 
Little Chandler parecia ter tanto!!! Será que ele sabia o que tinha?
Ele tinha um 'amigo', e no meio do conto, ao encontrar-se com ele, que estava visitando Dublin, o invejou. 
Ainda não acredito que ele o invejou, e só num encontro deixou de olhar para o que tinha e passou a reparar no que não tinha, que era a vida daquele que achava ser seu amigo, um boêmio, de caráter duvidoso. Ele disse a Little Chandler que se um dia se casasse seria com o dinheiro. Disse: "Ela deverá ter uma gorda soma no banco ou não servirá para mim".
Não devo julgá-lo, eu sei. Não quero julgar, nem posso, pois creio que não há quem não tenha de vigiar para não cair no engano, não esteja sujeito à ignorância ou que tenha de ficar atento para não ficar preso no tempo. 
Mas, como pôde ter invejado alguém que só queria ter dinheiro?! 
Escolheu querer ser o que não era, talvez por nem saber quem fosse. Talvez ainda, que tenha julgado a si, desprezando-se. Pois não querer saber de si e nem interessar-se por se conhecer são formas eficazes de expressar desprezo. Não pode ser bom desprezar a si, nem achar que não tem valor, seria acreditar na mentira e se deixar possuir pelo engano. 
Se assim o fizer, tem uma lei, que senhor Einstein não descreve, que diz que desprezar a si é extensivo a desprezar a outros, e tudo que conquista, tudo o que tem passa a não ter mais valor. Um Midas às avessas.
Sei que no final do conto ele tinha ódio e tinha remorso. Um homem que a pouco tempo tinha tanto ... Talvez não soubesse. Que pena. Ouvi tantas vezes o clichê: Eu era feliz e não sabia. Talvez seja só mais um clichê. 
Como pode em um conto, em um encontro, um só, perder tanto, perder-se tanto, prender-se no tempo e no engano, deixar-se prender. Como pôde?

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